O oceano há de ser entendido como espaço fundamental para a História da Humanidade, o que, de certa maneira, se conecta com uma das ideias centrais de Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões, a obra clássica da Literatura Portuguesa. “Viajar por mares nunca dantes navegados” no contexto que nos traz Os Lusíadas aponta não só as novas rotas marítimas para a Índia ou às expedições pela África, mas também demonstram as assimetrias e tensões provocadas pela violência e imposição desses encontros culturais levados a cabo pelas conquistas e achamentos. Nesse sentido, os referidos processos significaram complexos ajustes em posições epistemológicas relacionadas tanto com a ampliação do mundo (tal como era concebido até então pelo Ocidente), como com o confronto com as diversas culturas ameríndias. O discurso colombiano fixa as primeiras linhas de um imaginário ocidental que “inventou” e (en)cobriu a América, projetando sobre o Novo Mundo os temores e desejos, utopias e distopias do Velho. A rotunda afirmação de Américo Vespúcio a respeito de um mundo não conhecido pelos antigos não significou o abandono desse imaginário, que continuou crescendo e se transformando nas sucessivas viagens, explorações e entradas de conquista. Esses processos forjaram relações estéticas e conceituais entre os diversos portos e povos que possuem uma relevante importância histórica e que tem produzido ‘histórias emaranhadas’, tal como explica Phaf-Rheinberger, apresentando dessa maneira, estações de uma rota ainda não acabada, que juntamente com o tráfico de escravizados, também tem sido o do ingresso da modernidade e dos encontros culturais, com seus saberes, violências, tensões e misturas.
Numa perspectiva complementar, Antonio Benítez Rojo (2010) entende o oceano uma ponte de construções identitárias cujas representações são construídas a partir das práticas, experiências e necessidades, tanto individuais como coletivas de índole histórica e ao mesmo tempo, adscritos às problemáticas atuais. Nesse sentido, este conjunto de aspectos pode ser entendido como “[…] múltiples y complejas interrelaciones entre lo personal y lo político, la historia colectiva y la experiencia privada (Stecher, 2016: 13) dos mais diversos povos e suas culturas. Se trata, portanto, de experiencias enlazadas (Stecher, 2016) onde é possível vincular as mais diversas experiências de viagens levadas à cabo através dos oceanos.
Em Modern Slavery and Water Spirituality. A literary debate in African and Latin America (2017) Phaf-Rheinberger explora a ideia do oceano como conceito para analisar um corpus diversificado de expressões literárias contemporânea de países com passado de escravidão. Nessa seara, a crítica holandesa estabelece uma relação estética e conceitual entre a América Latina e a África, criando pontes mediante um corpus literário diversificado. O número temático “Os oceanos de fronteiras invisíveis: trânsitos, identidades e memórias na Literatura" vai exatamente neste sentido. Trata-se de um dossiê que, pela sua preocupação, dinâmica e criatividade, pretende fomentar a sinergia e o debate sobre as fissuras e tessituras do oceano, como lugar de diversas representações, trânsitos, memorias e de trocas possíveis sobre fenómenos adscritos a essas problemáticas. Nesse bojo, o número atual reúne uma serie de artigos de pesquisadores das mais diversas latitudes, cuja proposta vai exatamente neste sentido de propor diálogos e trânsitos pelos diversos campos das expressões estéticas e literárias que exploram a ideia do oceano como espaço georeferencial. Daí é possível observar que, o dossiê em questão promove em caráter basilar, a exploração entre diferentes arcabouços epistemológicos, culturais e literários além das fronteiras linguísticas e geográficas para trazer a colação não só referências sobre a ideia do oceano como também para construir alegoricamente uma espécie de circum-navegação simbólica na esteira de Magalhães. Nesse sentido, o número temático dirige seu olhar à promoção das artes, das letras, das memorias e das identidades entre aqueles que mediante suas publicações serão os navegadores do presente e do futuro. Os artigos que compõem o número temático convidam ao leitor, fundamentalmente, a pensar os oceanos como espaço georeferencial para abrir novas rotas com vistas ao futuro, mas também traz à baila o passado em diálogo com o presente.
Nesse sentido, com a publicação do número atual a Revista Communitas propõe o debate sobre as representações do oceano, tanto na configuração dos imaginários literários como no âmbito dos processos histórico-culturais, de identidades, de transitoriedades e de deslocamentos históricos e atuais. A Revista Communitas mediante a publicação de um conjunto de artigos de diversos cantos do mundo submete aos leitores à reflexão no âmbito das discussões sobre as representações dos deslocamentos oceânicos derivados de perspectivas de navegação, de trânsitos e de memorias no contexto geopolítico atual e das incertezas da globalização. De fato com a complexidade do fenômeno da globalização e os desafios que advêm da modernidade líquida, é provável que o oceano como espaço georeferencial seja posto à prova, não obstante sua representação histórica e suas metáforas, a importância dada aos valores culturais e simbólicos atribuídos a ele demonstra que, ainda é possível compreender o oceano como lugar histórico que nos convida a sonhar um mundo de novas expedições, trânsitos, encontros e de relações sólidas emaranhadas pelos bons ventos que nos permite sonhar a Literatura.