Dossiê "EmDependênciasSeculares"

2022-08-08

Dentre os modernosos sintomas desse estágio colonizatório estão a exploração madeireira, as queimadas, as barragens e todo o tipo de avanço predatório sobre imensas áreas de florestas e rios, expulsando ou eliminando comunidades humanas e destruindo os biomas e as vidas de milhares de seres; a exploração mineral, os latifúndios destinados à produção de commodities [leia-se pilhagem] com base na expropriação de centenas de pessoas e na degradação ambiental, dissimulada por bizarras peças publicitárias do tipo “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”; a implantação de vilas e cidades como ponto de apoio para a mercantilização de tudo ou para a exibição do privilégio de poucos e o descarte de milhares em depósitos urbanos sem urbanização.

Nada é mais afinado com a lógica de tal estágio colonizatório do que a infundada querela do marco temporal, espelho de séculos de genocídio, glotocídio e silenciamento de povos e línguas indígenas, justificando a devassa e invasão de seus territórios ancestrais.

Nesses cinco séculos de crônico estágio colonizatório, o estado brasileiro [colonial/monárquico/republicano] continua não apenas cumprindo o papel subalterno dos projetos e impérios globais, mas, promovendo um verdadeiro holocausto contra pessoas indígenas, pessoas pretas ou pessoas pobres de todas as cores e credos, racializadas para serem descartadas como parte do destino de suas sub-humanidades em uma fascista hierarquia dos corpos. Nesses descartes, ora o Estado age diretamente, ancorado em manipulado aparato jurídico para tentar justificar o uso da força bruta e suas armas letais, as “balas perdidas” ou as operações de chacinas em presídios e camburões asfixiantes; ora age indiretamente, quando não há espaço para a retórica rasa da legalidade. Nesses contextos, a exemplo do que ocorreu com Marielle Franco e Anderson Gomes, em 2018, ou de Bruno Pereira e Don Phillips, em 2022, entra em cena o lixo produzido em séculos de genocídio estatal: milicianos, jagunços, pistoleiros de aluguel e toda a sorte de covardes, pagos para fazer desaparecer as vozes contrárias, os corpos daqueles que se colocam no meio do caminho da destruição da vida e da injustiça. Essa prática nefasta, muitas vezes chamada de “limpeza”, nem sempre é feita às escondidas, mas é especializada em ocultar os nomes dos mandantes, mantendo a impunidade e o cinismo institucional.

Um descarte de tal modo naturalizado, normalizado, que, à exceção dos familiares das pessoas diretamente atingidas e suas amigas e amigos mais próximos, ninguém se importa. As instituições públicas não se importam, as escolas e universidades não se importam, as igrejas não se importam, a maior parte das mulheres e homens de ciência ou do mundo intelectual não se importa, a quase totalidade das organizações sociais, associações de classe, sindicatos, entre outros também não se importa.

Não se importam porque “é assim mesmo”, “é a vida”. Afinal, “a notícia não para” e, parafraseando o filósofo e poeta Édouard Glissant (O pensamento do tremor, 2014), os mortos de hoje invisibilizam os mortos de ontem, os assassinados de hoje ocultam os assassinados de ontem. Tudo é estandardizado na uniformização do reino da notícia globalizada, a “globalidade tranquilizante”, que a todos transforma em passivos consumidores de notícias sensacionais, normalizando a mercantilização da vida e da morte, a banalização da morte e da vida. É como se a expropriação de milhares de famílias de indígenas e não indígenas para abrir espaço ao insaciável latifúndio do gado, do milho, da soja ou outras monoculturas fosse produto da própria natureza; é como se fosse natural a invasão dos territórios tradicionais de distintos povos ou das áreas de proteção ambiental; é como se brotasse da terra a exploração ilegal de madeira, a pesca predatória, as barragens, a grilagem de terras nas florestas/campos e cidades, os incêndios florestais, a exploração mineral, o garimpo, a abertura e a pavimentação de estradas em áreas protegidas, o tráfico de armas e de todo tipo de droga, a contaminação dos rios e lagos, as represas, os agrotóxicos e o envenenamento da água, do ar e da terra; é como se caíssem das nuvens os milhares de sem-terra e sem-teto ou incontáveis famílias nas beiras das rodovias, amargando a indiferença, aliada da exclusão, e lutando todos os dias para ter direitos à vida; é como se germinasse do solo os assassinatos, as chacinas, a misoginia, a homofobia, o feminicídio, a fome, a morte prematura de crianças e jovens nas cidades e florestas/campos ou o genocídio de pessoas pretas e indígenas em todo o país.

Com base na crença de que é urgente e preciso nos posicionarmos sobre essas questões, para não sermos atropelados pelo alegórico carro da história, lançamos a presente chamada para o dossiê “EmDependênciasSeculares”. Para esse dossiê, sem perder de vista a pluralidade de pensamentos e ideias, serão bem vindas reflexões a contrapelo da lógica comemorativa em torno de mais um centenário do idealizado ato de fundação do estado nacional do Brasil, abrindo espaço para leituras outras, pautadas em metáforas outras, que nos inspirem a colocar os óbvios em questão e a desacomodar nossos olhares e nossas mentes anestesiadas; que nos ajudem a torcer e a contorcer as palavras para fazer ir pelos ares seus sentidos únicos, para sair das medidas, das métricas, das lógicas de causa e efeito, enfim, para fazer gemer as certezas, colocar em xeque a tradição inventada pelos vencedores e os signos de sua verdade histórica, e, mais ainda, para enfrentar a obtusidade, a torpeza e a obsessão  autoritária de certos governantes dos tempos presentes.

As contribuições, na forma de artigos, ensaios, resenhas, entrevistas, sempre em conformidade com as diretrizes para autore(a)s, deverão ser submetidas eletronicamente até a data limite de 23 de outubro de 2022.

Maiores informações sobre o periódico e suas diretrizes, acesse https://periodicos.ufac.br/revista/index.php/mui/index