É PARA COMER, CURAR OU MATAR?
PESSOAS, DEUSES, ANIMAIS E PLANTAS CONTRA A ESCRAVIDÃO NA SAINT-DOMINGUE (HAITI) DO SÉC. XVIII
Resumo
Este artigo objetiva discutir processos de racialização de territórios e gentes no contexto colonial haitiano, bem como formas de resistência elaboradas por homens e mulheres que recolheram dos próprios discursos e práticas racializantes, os elementos para luta pela vida e liberdade. Dialogando com estas múltiplas vozes, que ecoam nas recentes diásporas de afro-caribenhos através das Amazônias, e atravessados pelo silêncio cortante que se quer impor sobre elas, construímos uma reflexão a partir do canto/profecia de dois líderes revolucionários haitianos, Fançois Mackandal e Dutty Boukman, que em Saint Domingue (atual Haiti), na segunda metade do século XVIII, sonharam com o fim da escravidão e desafiaram as fronteiras que separariam deuses, animais, plantas e pessoas em prol das lutas de libertação. Pensando a partir de Benjamin (1987) e lendo Carpentier (1985), identificamos nas práticas e palavras proféticas desses dois homens, reminiscências que seguem interpelando o tempo progressivo e linear que, em nome da modernidade e do progresso, continua pisoteando os vencidos. Estes, por seu turno, exigem do tempo presente, através do canto, que é palavra e ação de corpos em movimento, a justiça que até então lhes foi negada. As conclusões apontam que, na dinâmica de uma profecia ainda não cumprida, a luta antiescravista ou as atuais diásporas afro-caribenhas, funcionam como prática de liberdade e interpelação contínua, que exigem justiça à fratura dos tempos, pois esta constrói o futuro alimentando-se do sangue de suas vítimas.